8 de setembro de 2012

Crítica | Renegando meu Sangue

RUN OF THE ARROW

(RENEGANDO MEU SANGUE)

Escrito e dirigido por: Samuel Fuller

Elenco: Rod Steiger, Sarita Montiel, Ralph Meeker...

Ano: 1957

Duração: 86 minutos

Uma perfeita mescla entre os tons pastel do distúrbio de um derrotado e os vívidos do sangue derramado.

Análise: O que direi agora pode soar improvável, mas dificilmente uma tradução de título no Brasil foi tão boa quanto ao escrito original – ambas livres de qualquer semelhança – como a deste filme. Partindo deste princípio, pode-se até absorver mais da essência cinematográfica na versão nacional do nome do que naquela escolhida pelo próprio diretor, roteirista e produtor do agonizante e filosófico, Renegando meu Sangue (ou Corrida da Flecha, como seria a tradução padrão): o centenário recém-completo, porém já de botas batidas, Samuel Michael Fuller.

Corpos estirados no chão poeirento e duro, o sangue companheiro vazando ao redor e uma última alma ambulando por ali acompanham a legenda de que este é o último dia da Guerra de Secessão; então se ouve um estampido interrompendo tudo para revelar a presença de mais alguém, mandando aquela suposta “última alma” ao reino dos mesmos que lá estavam. Em um campo aberto, o assassino marcha até sua vítima, os dois a sós; é a solidão do conflito, o vazio e a necessidade do fumo, pelas vistas do diretor. Aquela foi a última bala disparada na guerra, segundo muitos.

“Sou um antigo soldado rebelde,
Isso é o que sou,
E esta nação ianque não me importa em nada.
Eu não gosto da bandeira estrelada,
Está manchada com o sangue do Sul.
Odeio os ianques envenenados,
E os combati com tudo o que pude,
Odeio a nação ianque, e o uniforme azul.”

É ácida assim que a fita dá seu pontapé inicial, a todo vapor. E desencadeia logo de cara, por conta de sua montagem bastante orgânica e despreocupada, alguns personagens históricos (o confederado Robert Lee e o nortista Ulysses Grant são dois deles) que de pouco têm para o futuro do roteiro. Todavia, tais buracos são tapados através da inserção de assuntos proeminentes, que vão desde religião, passam por filosofia e chegam às alusões e desavenças de alto teor crítico.

O protagonista é o assassino de parágrafos acima, de nome O’Meara, pele clara e sulista, interpretado por um amargurado e profundo Rod Steiger. Seu espírito, de acordo com as características aqui expostas, retrata-o como um perdedor da guerra, a qual acabara no instante de seu disparo, e, por conseguinte, não aceita a vitória dos “azuis” – em certa passagem, prefere até mesmo seu enforcamento a reconhecer tal fato. É por tais motivos que empreende sua fuga ao Oeste, imediatamente, pondo-se à procura de uma aceitável origem para se apoiar.

O resultado vem com o encontro, por acaso, da sioux Mocassím Amarelo (Sara Montiel). Mediante a aceitação do chefe da tribo, Blue Buffalo (Charles Bronson, irreconhecível), O’Meara tenta se converter em um índio selvagem e vitorioso para renunciar de vez à sua pele caucasiana e desgastada. E, o que parecia ser o último dia da Guerra Civil, ironicamente, apenas acaba despertando o início de outra batalha...

“Temos o mesmo Deus, mas com diferentes nomes.”

Na cadeira de diretor, Samuel Fuller é franco e garante seu status de “poeta visual”, tirando de atores (a grande maioria desconhecida) a máxima carga dramática que conseguem; também é responsável pela exploração de uma violência estética de qualidade, num período que pouco se fazia a respeito. Além disto, em suas mãos de escritor, ele retrata um Oeste de gerações renegadas, que se dão por derrotadas sem nem mesmo reconhecer o berço do qual vieram, contestando identidades e ajustes significativos para o povo norte-americano – é o que denominamos de “toque na ferida”.

Para compor o fundo musical da película, Fuller contou com a ajuda de Victor Young, sempre arranjando faixas profundas que confabulem com os personagens. E como o filme já levanta um pano-de-fundo com demandas oriundas do patriotismo, nada melhor que um pesado tema baseado na canção tipicamente americana, Shall We Gather at the River.

Na fotografia, quem se une à equipe é Joseph Biroc. O peso de um dos mais versáteis diretores de fotografia da sétima-arte é elemento fundamental para o andamento das cenas mais ousadas, como as da “Corrida da Flecha” – quase sempre com planos gerais, os quais revelam o ambiente ao redor e apenas dão referências de personagens por pontinhos minúsculos na tela. Inclusive, poucos de seus planos flagravam closes dos atores ou detalhes de objetos; nas únicas vezes que o fez, foi com tamanha objetividade, sobretudo por tentar testemunhar o sofrimento ou chamar a atenção para determinado alvo.

Renegando meu Sangue é um faroeste de súplicas subversivas, de solidão, de metáforas perigosas (os abutres retratando a morte, vendo de tudo lá no céu, e sempre acompanhando O’Meara), e é atemporal, o que talvez se dê mais importante ao filme. Tal fato de poder ser assistido em qualquer época (pois em qualquer uma delas haverá os mesmos problemas expostos) já assegura pontos elevados a Samuel Fuller, que alcança o topo da atemporalidade na fala de Coiote Andante (Jay C. Flippen): “No meu tempo, tinham respeito pelos mais velhos. Não sei aonde vai o mundo na atualidade. Estes jovens agindo como selvagens...”.

O mesmo sioux, apesar do pouquíssimo tempo em tela, é um dos que mais ensinam no decorrer da projeção e, a partir dele, acontecem as melhores cenas. Nesta mesma categoria, ainda está a passagem na qual O’Meara ganha de um índio calado e novato um presente e, como manda o ritual daquela tribo, ele deve retribuir; portanto, regala-o com uma gaita, que faz sair da boca do garoto o primeiro som. Além de significante, pode ter sido uma das inspirações para Sergio Leone moldar seu eterno Harmonica (Bronson) no épico Era uma vez no Oeste (1968).

E, ao fechar das cortinas, Fuller deixa em aberto ao público a decisão pelo destino ainda incógnita, comunicando-se diretamente com cada espectador, seja ele branco ou índio, cristão ou judeu, tanto faz...

“O fim desta história só pode ser escrito por você!”.

MINHA NOTA:

POR BRUNO BARRENHA.

2 comentários:

  1. Well done Bruno!

    Do Fuller eu também gosto de "Shock Corridor", apesar de não ser faroeste.

    Abs.

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  2. Bom post! Fuller é um diretor que quero conhecer mais. Vi apenas "Cão Branco" e é um filme bem pesado, de fato. Fiquei curioso por "Renegando Meu Sangue".

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