Direção: Lima Barreto
Roteiro: Lima Barreto e Rachel de Queiroz
Elenco: Alberto Ruschel, Vanja Orico, Milton Ribeiro...
Ano: 1953
Duração: 105 minutos
Do Brasil, direto para o mundo. E com muito fervor!
Análise: Eclodindo repentinamente como um fenômeno social no nordeste brasileiro, em meados do século XIX, o cangaço serviu em nosso país assim como o velho-oeste prevaleceu nos Estados Unidos. Caracteriza-se pelas violentas ações dos chamados “cangaceiros” – grupos de homens armados que eram responsáveis por acometer os mais diversos crimes, como o sequestro de coronéis, roubos a latifúndios, e saques a comboios e depósitos. Vivendo das fugas contra as autoridades por tais delitos, eles não possuíam moradia fixa e a única certeza que tinham era a perambulação pelo sertão, com seus olhos pregados sem o mínimo de tranquilidade e segurança. Apesar de tudo, já era de suas sabedorias como sondar os mais diferentes mananciais de água, plantas curativas, trilhas de fuga e lugares com alimentos por aquelas regiões.
Fora este grupo de cangaceiros com princípios do “banditismo” em sua ideologia, havia mais dois tipos deles: aqueles que ofereciam serventias aos latifundiários, e os que recebiam o nome de “políticos” por desfrutar de grandes terras. O primeiro grupo surgido no contexto foi por volta de 1870, comandado por Jesuíno Brilhante; entretanto, o mais famoso dos “cabras-da-peste” recebe o nome de Virgulino Ferreira da Silva, ou simplesmente, Lampião. Ao lado de sua mulher, Maria Bonita, tornou-se uma das mais notáveis figuras nacionais.
Não é à toa, portanto, que a resenha de hoje vá para o primeiro clássico e sucesso do cinema nacional: O Cangaceiro, de Lima Barreto, produto da extinta Vera Cruz. A repercussão do filme foi tão grande que, além dos dois prêmios ganhos no importantíssimo Festival de Cannes, houve sua distribuição para cerca de 80 países ao redor do globo, sendo que, na França, permaneceu em cartaz por mais de quatro anos. Sem dúvida, é a película brasileira mais bem-sucedida de todos os tempos, com um acúmulo de sucesso internacional sem tamanho... Pelo menos na época de seu lançamento.
“Qualquer semelhança com fatos, incidentes e pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.”
Fluindo por meio de uma época “imprecisa; quando ainda havia cangaceiros” (como cita o próprio início de filme), a primeira imagem que nos aparece à retina é um grande exemplo de beleza e perfeição, a qual oferece o som da música Olê Muié Rendeira e um “grande plano geral” dividido em duas camadas: em uma delas, está um céu nuvioso e consumido de tensão e, em outra, uma escuridão em que se figuram as sombras dos cangaceiros do bando do perigoso Capitão Galdino Ferreira (Milton Ribeiro), o qual cultiva o medo e o pavor pelo sertão nordestino.
Durante um dos assaltos da trupe de Galdino, a professora Maria Clódia (Vanja Orico) é raptada e conhece o pacífico Teodoro (Alberto Ruschel), apaixonando-se pelo mesmo e gerando conflitos no bando, justamente por este romance ser contra alguns preceitos. E, como ambos não querem viver naquela situação de tensão e desordem pelo resto de suas vidas, o que lhes resta é a arriscada fuga, da qual serão tiradas muitas vidas.
Portanto, é plantando o terror nos vilarejos, que Galdino colherá os frutos na mesma moeda: a morte de vários de seus integrantes por conta das mãos de Teodoro. Sedento por vingança, é colocado em cheque não só a vida do antigo companheiro do Capitão, mas também uma das sequências finais mais emblemáticas e poderosas de nosso cinema.
Milton Ribeiro e Alberto Ruschel em seus respectivos papéis: o Capitão Galdino, vilão até o último segundo, e o mocinho sofredor Teodoro.
Escrito pelo próprio Lima Barreto em conjunto com Rachel de Queiroz, a trama é transportada para os tempos do cangaço com merecida propriedade, limitando-se não só às cenas de aventura muito bem construídas pelo diretor, mas também dando o espaço apropriado para o romance, que serve mais como um elemento de “destruição das culpas, salvação dos pecados” do que de sentimentos propriamente ditos. A divisão de águas com que o público terá de lidar se dá justamente pelas caracterizações representando o bem e o mal, sobrando para nós o desafio de escolher – durante os pouco mais de 100 minutos de projeção – para quem torcer.
Presenteando-nos com um fundo musical de ótima qualidade, o compositor Gabriel Migliori acerta em cheio na dose que diz respeito à mistura de batidas sertanejas com um traço mais clássico, musicalmente. O resultado, de fato, controla o filme em seus mais variados momentos, funcionando da melhor maneira possível.
A fotografia, propondo um preto-e-branco muito tonificado, por parte do inglês Henry Edward Fowle esmiúça os sentidos do seu espectador, relacionando o sofrimento do protagonista em seu último suspiro com a dramaticidade proposta por suas lentes, a qual nos transporta para outra realidade com aquelas maravilhosas paisagens em contraste com o pôr-do-sol. Apesar de ser natural da Inglaterra, H.E. Fowle prestou grande parte de seus serviços como fotógrafo para filmes brasileiros; inclusive, outro de nossos maiores clássicos tem sua marca: O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte, 1962).
Com uma direção bastante lapidada para a perfeição, Lima Barreto remonta os planos primordiais utilizados no “gênero estadunidense por excelência” (o western), sobretudo aqueles que demostram com mais detalhamento a paisagem de uma caatinga “artificial” (as gravações se deram no interior de São Paulo, e não propriamente no Nordeste), com toques que vão desde John Ford até outros lendários diretores, porém sempre nos levando à conclusão de que aquilo é uma obra minuciosamente brasileira, com suas devidas características para tal.
Considerado o melhor produto da grandiosa e extinta Companhia Cinematográfica Vera Cruz, O Cangaceiro foi premiado duplamente no Festival de Cannes, como Melhor Filme de Aventura e, esfomeado pela vitória, ainda teve a felicidade em trazer outro prêmio para casa, este devido à já citada canção Olê Muié Rendeira, interpretada pela atriz Vanja Orico – acompanhada pelo grupo musical Demônios da Garoa – em uma de suas mais belas imagens durante a projeção.
Epopeico a sua maneira, o filme de Lima Barreto também regou toda uma geração de cineastas que se baseavam no peculiar cangaço brasileiro, como o exemplar diretor Glauber Rocha em sua sequência que conta comDeus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), sendo que o último dos citados também conquistou um lugar em Cannes pela vitória de Glauber na categoria deMelhor Direção.
O que podemos tirar de tudo já explicado, é a superioridade de O Cangaceiro sob as demais obras realizadas em território brasileiro. Ele é, com toda certeza, o primordial trabalho nacional responsável por representar a cara de nosso país para o exterior, ganhando as telas de todo o mundo. Era como se disséssemos para os gringos: “Não é só de futebol que vive o povo tupiniquim... Nosso cinema também é de qualidade! E de muita qualidade, pode apostar”.
MINHA NOTA PARA ESTE FILME:
Considero uma das mais belas e perfeitas obra do nosso cinema, ao lado de O Pagador de Promessas e alguns outros com valor menos agregado.
ResponderExcluirO Cangaceiro encanta por tudo e, mesmo sendo uma fita em P&B, merecia ter ficado apenas no seu original, ou seja, sem uma continuação, que quase termina por apagar as luzes de uma obra feita tantos anos atrás, mas que repica com extrema fidelidade o momento do cangaço.
Filme simples, sem invenções, utilizando como pano de criação externas originais, com um elenco onde Milton Ribeiro, Alberto Ruschel, Marisa Prado e Vanja Orico se enquadram com perfeição no que foram fazer, O Cangaceiro prima pelo clima nordestino imprimido nas entranhas do filme, lhe infringindo um clima de realidade nua e crua do nosso sertão.
Lima Barreto soube fazer um filme que, mesmo depois de quase 60 anos de criado, ainda é visto com enorme prazer por um numero inimaginável de cinéfilos ávidos por uma boa sessão de cinema.
Uma obra imortal, que foi vendida aos americanos por preço de pipoca, ou seja, 20.000 dólares.
jurandir_lima@bol.com.br
Confesso que não cheguei a ver o remake de 1998, pois não sou muito a favor dos filmes que "repicam" o valor original, tornando esta uma obra bastante prejudicada.
ExcluirOs planos e a direção de atores de Lima Barreto são simplesmente geniais, de uma qualidade (e simplicidade, digamos) bastante amplas. A parte em que cita a "realidade do sertão" é também muito concisa, sem enrolações e partindo mesmo para o objetivo.
Sem dúvida, uma imortalidade nacional!
Parabéns pelo ótimo post. Muito bom ver também filmes nacionais por aqui.
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